sexta-feira, 8 de junho de 2012

SANTINHA DO PAU OCO


Meu amante mascarado teve que viajar a trabalho. Achei péssima essa abstinência forçada. É o mesmo que a gente comprar um sorvete e, na primeira lambida, cair a bola inteira no chão. Fica aquela certeza de desperdício mesclada com um gostinho de quero mais. Ah, como eu queria estar agora passando a língua mil vezes de cima a baixo naquele homem gostoso sabor de pecado.

Sempre que quero muito uma coisa, ou alguém, ou uma situação, e não está nas minhas mãos o poder de alcançá-la, penso assim: "Vivi a minha vida inteira sem isso e nunca me fez falta. Posso sobreviver mais um dia (uma semana, um mês!). Não passa a vontade, mas aplaca a ansiedade. Procuro pensar em coisas legais que fiz, pessoas que me deixaram feliz, situações que me deram prazer. E que poderia repetir, se quisesse. Então, um calor bom de conforto me aquece o peito e um sorriso largo me rasga os lábios e já me animo toda. Porque a vida é o que a gente quer que ela seja.


Noite solitária, peguei uma lata de amendoins na despensa, um videozinho pornô para me distrair e coloquei no volume máximo só para importunar minha vizinha de porta, uma chata. Às vezes sou infantil assim. Mas, se é para ter inimigos, que pelo menos eles tenham motivos para não gostarem de mim. E não fiquem a cometer injustiças como a tal que, na última festinha que dei no apê, chamou a polícia reclamando do barulho. E lá jazz faz barulho? Ela não entende nada de música.

"Resolvi cutucar a onça com vara curta e não é que ela saiu da toca?", pensei, enquanto me levantava para atender à campainha que tocava insistentemente. Com um bodoque na língua, prestes a despejar uma saraivada de palavras ácidas sobre a mal resolvida para não dizer mal comida, que acho um termo grosseiro, apesar de bem mais verdadeiro. Eis que abro a porta e dou de cara com o meu gostoso vizinho da frente. Gostoso e peludo. Ula-lá!

"Quer dizer que a senhorita dá uma festinha e não me convida, é?", sorriu, com uma garrafa de vinho na mão e duas taças. "Oi, querido, quem me dera estar numa balada, estou sozinha mesmo, curtindo uma fossa abissal", sorri de volta. "Eu sei, eu vi você chegar, dei um tempo para ver se teria visita e, como não vi ninguém, estou me candidatando", piscou e levantou as taças. "Hum, não sei, não", fiz charminho. E ele: "É pegar ou largar. Digamos que, se você pegar, eu não vou te largar", me fitou com aquele lindo par de olhos azuis penetrantes. Deixei ele penetrar.

Acontecimentos inesperados desse tipo acontecem com frequência na minha vida. Pena que tenho só duas mãos pra levantar para o céu e agradecer. Talvez seja uma compensação por eu estar sempre aberta, bem aberta, para novas oportunidades. Por nunca descartar o novo, seja algo palpável ou apalpável. Ou por meu corpo ser o porto seguro das almas sem rumo. Contrariando as vertentes conservadoras que teimam em afirmar pejorativamente que, quando se é de todos, não se tem ninguém, eu não sendo de ninguém, positivamente estou sempre cercada de gente. E isso, longe de angustiar ou denegrir, me faz um bem danado. Pecado é sentir e não realizar.

Acabo de ler um livro ótimo, "A louca da casa", da espanhola Rosa Montero. Entre outras coisas bacanas, ela levanta uma questão bem interessante sobre a identidade feminina: a hipótese de que tudo o que foi dito até bem pouco tempo sobre as mulheres, não passou de uma transcrição do imaginário masculino. Até recentemente, o mundo da literatura era um clubinho fechado majoritariamente composto por homens. As poucas mulheres escritoras que se sobressaíam se escondiam atrás de pseudônimos masculinos e, para terem suas ideias aceitas, reproduziam o pensamento dominante: o machista. Lembrem-se de que revistas, jornais e internet são mídias recentes, não tão populares antigamente, quando os livros eram os únicos donos da verdade.

Talvez nós, mulheres, não sejamos essa santinha que nos pintaram. Talvez nunca tenhamos gostado de ser virgens e de barganhar com isso. Talvez não sejamos assim tão maternais, nem lidemos tão bem com a maternidade como insistem em nos fazer acreditar - que nascemos para isso. Talvez mesmo nem gostemos de crianças, nem queiramos ter filhos. Talvez também não sejamos "fáceis" por sucumbir a desejos e prazeres. Não existe essa coisa de mulher "fácil" ou "difícil". Somos ou não donas do nosso nariz? Por que temos que ser oito ou oitenta? Por que nos cobramos tanto quando sabemos que, dentro de nós, há um universo de nós mesmas?

Estamos no limiar de uma nova Era, uma nova etapa, estamos redescobrindo nossa identidade e isso incomoda muita gente, inclusive a nós, mulheres. Nos foi dada a liberdade de sair do ovo, mas será que queremos mesmo virar galinhas? Até onde podemos ir? A quem devemos pedir permissão se não a nós mesmas? Depois de anos de clausura social, onde nossas liberdades foram podadas em todos os sentidos e fomos aquilo que esperavam que fôssemos, eis que agora temos voz, corpo, mente, alma, teclados, podemos trocar ideias, experiências, podemos assinar embaixo ou riscar tudo e recomeçar.

Pensei em tudo isso enquanto o Patrick me lambia o lóbulo da orelha. Estou, sim, apaixonada pelo mascarado, mas só quem precisa ter certeza disso sou eu mesma. E o fato de estar caidinha na dele não me impede de apreciar também um chamego pra lá de delicioso com outro homem - ou mulher. Porque eu sou assim e me respeito, tanto quanto respeito os outros. Você pode ser o que for, desde que assuma para si o que é. E se não gostar do que encontrou, quando se encontrar, mude. Antes de ser mulher, seja simplesmente feliz.

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