domingo, 22 de abril de 2012

VIZINHANÇA


Sempre faço muitos amigos e inimigos nos lugares por onde passo. Os amigos são voluntários, os inimigos, espontâneos. No meu novo prédio não está sendo diferente. Mudei pra lá há oito meses e a coisa tomou rumos de torcida de futebol: geral me odeia, geral me ama. Polarizou. Isso porque tem uma velha guarda avançadinha e uma nova guarda retrógrada. Por incrível que pareça, é assim mesmo. A caretice humana está onde menos se espera.

Tudo começou com um amasso no elevador. Pega-pega básico, do tipo coelhinho-relâmpago, sem intenção de provocar curtos-circuitos maiores. Era para ser um vapt-vupt sem preâmbulos ou postergação, até porque nosso sistema de compressão não conseguiria esperar a privacidade recomendável de um lar para despressurizar. A coisa toda tinha começado no carro, esquentado na garagem e no elevador já estávamos num grau de calor impossível de controlar: pegamos fogo. Ele levantou a minha saia e me jogou contra a parede, olha que azar, justamente em cima dos botões. Trancamos o elevador.



Na vida nada acontece por acaso e não foi por acaso que, naquela hora da madrugada, uma solteirona do terceiro andar resolveu passear com o totó. Chamou o elevador e nada. Chamou uma segunda vez e nós lá, no beeeem bom. A partir daí, ela começou a bater na porta com força, alguns vizinhos acordaram, o porteiro plantonista veio acudir e, na lambança, o totó, assustado, fez xixi no carpete do corredor. Culpa da gritaria, cachorros de apartamento não estão acostumados à histeria coletiva. Mas é claro que botaram a culpa em mim.

Pronto, um escandalozinho, falatórios aqui e ali, e eu com a saia cada dia mais curta, só pra polemizar. E alegrar os porteiros. Fazia duas semanas que eu tinha me mudado e já havia gente querendo me expulsar. Felizmente para mim, meu imóvel é próprio. Podem se escabelar à vontade, mas me tirar do meu trono, ninguém tira. Além do mais, não foi intencional. O que posso fazer se o elevador se emocionou com a nossa performance? Se ainda tivesse causado algum prejuízo material, vá lá, mas os arranhões se limitaram às costas do meu companheiro, não deixei nada além de marcas no espelho. Nada que não saísse com vidrex.

O dissabor da advogada que mora ao meu lado eu conquistei com o episódio do topless na piscina, que já comentei aqui. Desde então, ela não perde uma oportunidade de me crucificar. Na primeira reunião do condomínio pós-incidente, me descascou. Disse que pessoas da minha estirpe não eram bem-vindas num prédio familiar, que regras existiam para serem cumpridas e que eu iria ter que me adequar, por bem ou por mal. Vozes se alteraram, dedos se ergueram em riste, foi uma verdadeira ecatombe frenética de conservadores. O monte de desaforos foi me dando um calor, um calor, que tive que tirar a blusa e ficar de top. Sou do tipo que raciocino melhor nua. Mas é claro que não cheguei a usar todo o meu potencial ali no salão.

Para configurar transgressão é necessário antes existir uma lei, o que não existia - não ao menos no papel - sobre prática de amor livre nos cantos escuros das escadarias, aproveitamento pleno do sol da piscina para bronzeamentos integrais, roupas transparentes, gemidos supersônicos. Não havia nada que eles pudessem fazer contra a minha “falta de modos”. Tapinhas na bunda seriam bem-vindos. Mas ninguém se prontificou.

Um belo dia, o pneu do meu carro amanheceu furado. Putz, justo no feriado, justo no aniversário da mamãe. Eu poderia pegar um táxi, se o almoço não fosse na serra. O que fazer? Clamei pelo porteiro, nada. Esperei alguma boa alma masculina se materializar na garagem, nada também. Eu não estava atrasada, mas estava com pressa. Mamãe adora flores e eu não queria que o buquê que havia comprado desmilinguisse. Trocar o pneu não seria problema, brabo era sujar meu vestido de seda. Não tive dúvidas, saquei o floreadinho e estendi no banco de trás. De lingerie, fiz o serviço com um profissionalismo que até me surpreendi. Ninguém apareceu, deu tudo certo.

Na noite seguinte, dlin, dlón, eis que toca a campainha. Eu no banho, relaxando, quem seria? Atendo, não atendo. Resolvi conferir. Nunca se sabe, podia ser o gostoso vizinho da frente pedindo uma xícara de açúcar. Se acontece na propaganda, por que não aconteceria na vida real? Abri a porta enrolada numa minúscula toalhinha de rosto. Era a síndica, com cara de poucos amigos - pouquíssimos, eu diria mesmo nenhum.

Vinha me entregar uma carta-advertência: câmeras do circuito interno de TV tinham captado minha indecência. “Por que será que toda síndica tem cara de fuinha?”, pensei, enquanto ela desfilava sua verborragia desagradável. Quando foi me estender a carta, falei que não poderia receber. “Por que não?”, quis saber. Porque se eu esticasse a mão, a toalha cairia e eu não queria dar o trabalho de ela ter que digitar uma segunda advertência. Ela insistiu. Você já viu uma fuinha de olhos arregalados? Coisa mais feia...

Mas não tenho só desafetos no prédio. Tem muita gente que joga no meu time e, como eu disse, pertence a uma velha guarda jovem de espírito. Uma delas é a Iracema, do 202. Ela tem 81 anos e é a minha maior conquista. Alegre, espontânea, moderna, independente, é ótima e merece um capítulo à parte. É daquelas pessoas que sabe que da vida o que se leva são as boas lembranças e as gargalhadas, os amores e os prazeres. Ainda ontem tomamos licor juntas. “Só sabe morrer quem sabe viver”, Iracema me disse, “e não é à toa que os franceses chamam orgasmo de ‘pequena morte’”, rebati. Gargalhamos madrugada adentro.

Depois fiquei sabendo que foi crime encomendado. Um atentado aos meus atentados aos pudores. Foram os porteiros, meu aliados, que me contaram.  Eles me adoram. Sou simpática e tenho sempre uma palavra de incentivo: “Esse novo corte de cabelo lhe deixou mais jovem, Damião, conta pra mim, você anda arrasando corações?”, ou “Você é forte como um touro, Jocivaldo, jamais conseguiria carregar tantas sacolas assim!”. E os sorrisos desabrocham daquelas caras sofridas. Isso quando não deixo uma gorjetinha pelas gentilezas de receberem discretamente minhas correspondências - e encomendas bem apessoadas - nem sempre discretas. Foi do Damião que recebi um dos melhores elogios: que sou uma pessoa “distinta”. Distinta e feliz.

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