Há certos momentos na vida que são inesquecíveis não porque
jamais os esquecemos, mas porque não paramos de lembrá-los. São situações e
emoções que você sabe únicas, que beiram a incredulidade pela magnitude, que
dão vontade de ajoelhar e agradecer pelo privilégio de vivê-las. Momentos tão
incríveis que dão um aperto no peito pela incapacidade de repeti-los - pois a
perfeição é finita e uma vez atingida só pode ser superada por ela mesma. Pela
consciência de que eles já se foram e só nos resta amargurar de saudade,
repassá-los na memória e rir ou chorar de felicidade. Assim foi a festa de “Amante Secreto”, deste ano, na
casa da Bebel.
Chegamos, Silvinha e eu, pontualmente às 21h. Nada de
entradas triunfais, pescoços virando em nossa direção, aquela coisa toda. Essa
tática é boa quando não conhecemos ninguém e queremos abafar, dizimar a concorrência
e ter o privilégio da escolha do parceiro. Não era o caso. Todos naquela
recepção eram amigos de longa data, amigos íntimos, eu diria. Havia um ambiente
de sedução, mas não de conquista: seríamos sorteados, entregues à sorte, ao
destino, não precisávamos despender energia com as artimanhas do jogo do
acasalamento. Podíamos ser nós mesmos, com decotes, fendas, volúpias, claro,
mas naturalmente transparentes, com os desejos à flor da pele e exibidos para
quem quisesse ver. O sexo não era o fim. Era o começo e o meio.
Apesar do ar blasé de início de festa, dava para sentir uma
onda de excitação contida, olhares buscavam olhares, sorrisos encontravam
cúmplices, éramos crianças aguardando o Papai Noel com seu grande saco de
brinquedos. Será que ele atenderia aos nossos desejos mais profundos?
Ferormônios tilintavam no ar numa atmosfera lounge, garçons passavam com
drinks fumegantes e taças de champagne. Apanhamos duas e tratei de apresentar
as estonteantes curvas da Silvinha à dona da casa, que já estava espichando
para ela uma mirada cheia de fome. Sabia que a minha amiga ia agradar a gregos
e troianos. Começou agradando à anfitriã - um ótimo primeiro passo.
A mansão da Bebel, também conhecida como “Mansão dos
Sentidos”, tinha 15 quartos e um mundo de possibilidades. Mas,
surpreendentemente, desta vez fomos informados que a festa não aconteceria na
casa principal. Então, onde? Surpresa. Tivemos que resistir à tentação de
espiar pelas janelas para colher pistas e, mesmo que tentássemos, pouco
veríamos: grossas cortinas nos impediam e holofotes potentíssimos focados de
fora para dentro nos ofuscavam. O esquema estava muito bem organizado.
À meia-noite fomos conduzidos a uma sala enorme, com painéis
lindíssimos pintados à mão com a Bebel em posições e atuações eróticas,
verdadeiras obras de arte. Ganhamos vendas para colocar sobre os olhos,
uh-la-lá! O mundo dos sentidos começou pelo tato.
*
É de praxe, no nosso grupo, que o organizador do encontro
dite as regras. É um voto de confiança e uma espécie de agradecimento pela
hospitalidade. E, claro, uma maneira de uma festa nunca ser igual à outra. Esta
noite, em vez de nomes, foram sorteados e distribuídos números. Eu tirei o 9,
mas não sabia quem mais o tinha tirado. O detentor do outro 9 seria meu a noite
inteira e eu dele, ou dela, e a completa ignorância da sua identidade elevava
minha volúpia ao cubo.
Seria o interessantíssimo acompanhante do Hugo, cuja
masculinidade do aperto de mão quase me fez pensar em abandonar o
bissexualismo? Seria a ruivíssima Perla e seus cabelos de fogo, sua voz quente,
seu cheiro de alecrim? Seria um dos gêmeos idênticos e de sabores distintos já
provados e aprovados, mas sempre apetitosos? De quem eu seria? Havia tantos
maravilhosos! Um sino soou, as vendas foram colocadas e fomos guiados até uma
passagem. Através de um corredor infinito, andando às cegas entre risadas e
suspiros, entre toques e apalpadelas, nos dirigíamos ao que seria nossa cova e
alcova.
Como presente, este ano John mandou
construir no jardim um labirinto gigantesco, repleto de salas e recantos e
portas misteriosas e tecnologia de ponta para nos enlouquecer de prazer. Tenho
que tirar o chapéu para a criatividade do marido da Bebel, aliás, eu tiraria
tudo para ele, cuja generosidade e intelectualidade me dão um tesão danado.
Não, não pense que a Bebel se
importa, se magoa ou se sente traída. Traição é uma palavra que não consta no
vocabulário de quem optou por uma vida devassa e libertina. Tudo é permitido
desde que validado pelo permissionário. As cartas são postas na mesa, as regras
são explícitas, assim como o sexo e é só isso o que interessa. Não há amor, há
respeito, não há compromisso, há espontaneidade, não há paixão, há tesão, não
há vínculos, há ligações, não há sentimentos de posse, há possessões, não há
ciúmes, há vontade de ver o outro feliz.
Tiramos as vendas. Estávamos em uma espécie de tenda
espaçosa, com sofás e almofadas espalhadas, um bar a um canto, luzes indiretas
deixando mais penumbra do que claridade. Sem saber, estávamos no meio do
labirinto. Duas modelos estonteantes, em sexy lingeries, circularam
distribuindo cordões de couro com pingentes de ouro branco. Atei meu número no
pescoço. O champanhe começou a fazer efeito. Não consegui descobrir o meu par.
O acompanhante do Hugo me olhava fixo do outro lado da tenda. Sorri. Ele veio
caminhando, conferimos nossos números, não batiam. Sorrimos. “Fomos feitos um
para o outro, mas não por esta noite”, eu disse. Ele pegou a minha gargantilha
e foi me puxando até encostar o nariz no meu. Sussurrou: “Deixa eu mostrar como
você está enganada”, e juntou o 6 dele com o meu 9: 69. Sorriu.
Havia quatro portas: Norte, Sul, Leste, Oeste. Podíamos
entrar em qualquer uma. Podíamos levar o tempo que fosse para encontrar nosso
par. Podíamos nos perder para sempre nas esquinas daquele labirinto de
prazeres. Alguns pares já haviam se localizado e começado a brincadeira ali
mesmo. Outros já sabiam a quem pertenciam, mas preferiram penetrar no
instigante labirinto, só de sacanagem. O que viria pela frente - ou por trás?
Eu estava em transe, curiosa, excitada, encharcada. Era como se estivesse
sonhando acordada. Tudo parecia irreal, perfeito demais, minha pintura pessoal
surrealista concretizada em fascinantes flashes de uma suruba impagável, ilimitada
e inebriante. Entrei pela porta Norte. Caçador e caça mesclados num só
espírito. Deus e deusa num só corpo. O jogo começou.
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