sábado, 12 de maio de 2012

EFEITO CASCATA


O visual lá de cima era lindo, pelo pouco que vi, num relance entre um beijo e uma puxada de cabelo mais vigorosa. O dia estava nascendo, o sol brotava sobre um horizonte de oceano sem fim, inacreditável como estar ali com aquele monumento grego, aquele ajuntamento de músculos compactos e vibrantes, aquela língua morna passeando no meu corpo, orifícios, máquina de provocar arrepios e suspiros, gemidos e contrações. O sereno grudado numa penugem de relva sobre as pedras e acima de nós só gaivotas esfomeadas assistindo de camarote ao espetáculo de mais um fim de noite na longitude daquele hemisfério. Assim começou o meu ano.



Fui passar o Reveillon com duas amigas em Garopaba, Santa Catarina: a Catarina, que não é nada santa, e a Pri, que de santa só tem a cara. Duas beldades gostosas, apetitosas, saborosas, cariocas e safadas. O chiado das cariocas tem o poder de provocar incontroláveis ereções sonoras nos pobres mortais do sexo masculino. Ah, não sabe o que é uma ereção sonora? Vou pedir pra Pri sussurrar umas coisinhas no seu ouvido, você vai entender. Eu, que sou mulher, fico molhadinha. A Pri é rainha de deixar a gente em ponto de bala. Ela tem o dom da palavra. Entre outros talentos, claro.

Nossa intenção era das mais sinceras: apenas cruzar a virada de ano juntas, cruzando, descruzando, enroscando-nos como nos velhos e bons tempos do colégio, quando nossos pais achavam que o castigo máximo aos excessos de noitada era nos obrigar a estudar, mal sabendo que tudo o que desejávamos era justamente ficar, sem interferência, trancadas num quarto, na maior sacanagem. Nada de grandes badalações neste Réveillon. Planejamos estourar um champanhe na beira da praia da Ferrugem, onde a Cat tem casa, depois nos recolhermos aos nossos aposentos para a noite borbulhar.

Tudo ia muito bem até a Priscila aparecer na sala com um minivestido branco, soltinho e transparente, de biquíni também branco e minúsculo por baixo. “Ah, não, Pri, a gente combinou de sairmos comportadas”, mas ela disse que era para dar sorte e não abria mão daquela cor, que eram as únicas peças brancas que tinha, blá, blé, bli, e ainda deu aquele sorrisinho de canto de boca com covinhas que só a Pri tem. Safadinha. Ela sempre quebra nossas boas intenções. Estávamos em minoria, eu e a Cat, porque quando a Pri sobe num salto, com aquele par de coxas de parar o trânsito, vira um mulherão que vale por três. A nós coube apenas tirar a roupa e nos colocarmos à altura da nossa amiga. Afinal, era também o aniversário dela, dia 31, e ela tinha 31 desejos para serem atendidos. Esse foi o primeiro.
 
A coisa mais difícil do mundo é sairmos as três e acabarmos a noite sozinhas. Sozinhas, eu digo, nós três juntas. Sempre surge um convidado especial, uma convidada ou vários, ou várias, e nossos planos vão por água abaixo. Dessa vez, porém, estávamos determinadas. Mas de que adianta determinação diante dos apelos com sotaque carioca da Pri? Ela botou o olho no bartender do quiosque assim que chegamos e a íris dela dilatou. Pode ter sido um efeito da tocha acesa sobre o balcão, mas eu conheço bem aqueles olhos verdes quando crescem, quando querem, quando estão possuídos de desejo, cobiça, volúpia. Cochichei pra Cat, “o efeito cascata começou”. Ela sorriu.

Efeito cascata é código nosso, uma espécie de efeito dominó, onde uma vai arrastando a outra e outro e outras e outros e acabamos todos molhadinhos. Não é um ótimo nome? Bem, um já estava escolhido, o bartender, quem mais convidaríamos para nosso banquete particular? Chegamos cedo, o bar estava vazio, então sentamos nuns banquinhos altos, daqueles que a gente precisa ou empinar a bunda para apoiar os pés, ou reclinar o corpo para segurar na bancada, e ali ficamos, bebendo, rindo, beliscando uns petiscos de camarão, petiscos de carne e osso. Logo, logo, tínhamos um respeitável plantel puro sangue ao nosso redor, resfolegante.

A Cat estava sentada de costas para a entrada com o longo rabo de cavalo loiríssimo escorrido até o cofrinho que aparecia no decote do vestido que a deixava quase nua para quem visse assim, de trás. Ela ficou ali de propósito, um chamariz estratégico, um cordeirinho atraindo lobos maus, o que se mostrou eficientíssimo. Tanto que o dono do bar achou ótimo e disse para o bartender não nos cobrar drink algum, foram todos cortesias, sem saber que o malabarista dos coquetéis já estava há horas nos cortejando, há muito enfeitiçado pelo guizo rouco da Pri e seus longos xis.

Uma mão ousada me enlaçou a cintura e, quando virei, não acreditei: os olhos negros também ousados, o maxilar másculo, o jeito de falar ao pé do ouvido, só o sorriso era maroto e adoro ousadias marotas. “É impressão minha ou estou no paraíso?”, cantadinha barata, mas a pegada era boa. “O paraíso é muito melhor do que você pode imaginar”, sorri de volta. Foi então que ele viu, por cima do meu ombro, minhas amigas já devidamente sinalizadas por mim e com sorrisos receptivos. A pegada ficou mais forte. “Suas amigas são lindas, mas gostei foi de você”, me surpreendeu.

Ah, dúvida cruel, quando se pode ter tudo ou muito ou tudo e muito, o que escolher? Busquei o olhar da Catarina que entendeu rapidinho a situação, também ela enroscada com um loiraço de olhos claros e pele bronzeada de 1,90m e com certeza avantajado em outros quesitos. Olhamos pra Pri que estava absorta, praticamente em cima do balcão dando bola para o bartender porque ali não dava pra dar outra coisa. Então, tá, né? O efeito cascata ficaria para amanhã. Já o efeito dominó começou ali mesmo: derrubamos duas garrafas de champanhe, derrubamos nossos planos em plena contagem regressiva para a meia-noite e, ao primeiro sinal do novo ano, saímos cada uma com um par – só a Pri ficou, atrás do bar - para nos derrubarmos.

Depois de horas e horas perdidos de tesão nas areias da beira do mar, meu pedaço de mau caminho me levou para um morrinho na esquina entre duas praias, a da Ferrugem e a “prainha do canto”. Subimos por pedras e trilhazinhas até o topo do que dizem ser um antigo cemitério indígena e ali, entre arbustos e brisas e dedos e línguas e um tronco rígido e uma caverna úmida, fomos deixando de presente nossos sagrados gritos de guerra. O visual lá de cima era lindo, pelo pouco que vi, num relance entre um beijo e uma puxada de cabelo mais vigorosa. O dia estava nascendo, o sol brotava sobre um horizonte de oceano sem fim...

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