O visual lá de cima era lindo, pelo pouco que vi, num relance
entre um beijo e uma puxada de cabelo mais vigorosa. O dia estava nascendo, o
sol brotava sobre um horizonte de oceano sem fim, inacreditável como estar ali
com aquele monumento grego, aquele ajuntamento de músculos compactos e
vibrantes, aquela língua morna passeando no meu corpo, orifícios, máquina de
provocar arrepios e suspiros, gemidos e contrações. O sereno grudado numa
penugem de relva sobre as pedras e acima de nós só gaivotas esfomeadas
assistindo de camarote ao espetáculo de mais um fim de noite na longitude
daquele hemisfério. Assim começou o meu ano.
Fui passar o Reveillon com duas amigas em Garopaba, Santa
Catarina: a Catarina, que não é nada santa, e a Pri, que de santa só tem a
cara. Duas beldades gostosas, apetitosas, saborosas, cariocas e safadas. O chiado
das cariocas tem o poder de provocar incontroláveis ereções sonoras nos pobres
mortais do sexo masculino. Ah, não sabe o que é uma ereção sonora? Vou pedir
pra Pri sussurrar umas coisinhas no seu ouvido, você vai entender. Eu, que sou
mulher, fico molhadinha. A Pri é rainha de deixar a gente em ponto de bala. Ela
tem o dom da palavra. Entre outros talentos, claro.
Nossa intenção era das mais sinceras: apenas cruzar a virada
de ano juntas, cruzando, descruzando, enroscando-nos como nos velhos e bons
tempos do colégio, quando nossos pais achavam que o castigo máximo aos excessos
de noitada era nos obrigar a estudar, mal sabendo que tudo o que desejávamos
era justamente ficar, sem interferência, trancadas num quarto, na maior
sacanagem. Nada de grandes badalações neste Réveillon. Planejamos estourar um
champanhe na beira da praia da Ferrugem, onde a Cat tem casa, depois nos
recolhermos aos nossos aposentos para a noite borbulhar.
Tudo ia muito bem até a Priscila aparecer na sala com um minivestido
branco, soltinho e transparente, de biquíni também branco e minúsculo por
baixo. “Ah, não, Pri, a gente combinou de sairmos comportadas”, mas ela disse
que era para dar sorte e não abria mão daquela cor, que eram as únicas peças
brancas que tinha, blá, blé, bli, e ainda deu aquele sorrisinho de canto de
boca com covinhas que só a Pri tem. Safadinha. Ela sempre quebra nossas boas
intenções. Estávamos em minoria, eu e a Cat, porque quando a Pri sobe num
salto, com aquele par de coxas de parar o trânsito, vira um mulherão que vale
por três. A nós coube apenas tirar a roupa e nos colocarmos à altura da nossa
amiga. Afinal, era também o aniversário dela, dia 31, e ela tinha 31 desejos
para serem atendidos. Esse foi o primeiro.
A coisa mais difícil do mundo é sairmos as três e acabarmos a
noite sozinhas. Sozinhas, eu digo, nós três juntas. Sempre surge um convidado
especial, uma convidada ou vários, ou várias, e nossos planos vão por água
abaixo. Dessa vez, porém, estávamos determinadas. Mas de que adianta
determinação diante dos apelos com sotaque carioca da Pri? Ela botou o olho no
bartender do quiosque assim que chegamos e a íris dela dilatou. Pode ter sido
um efeito da tocha acesa sobre o balcão, mas eu conheço bem aqueles olhos
verdes quando crescem, quando querem, quando estão possuídos de desejo, cobiça,
volúpia. Cochichei pra Cat, “o efeito cascata começou”. Ela sorriu.
Efeito cascata é código nosso, uma espécie de efeito dominó,
onde uma vai arrastando a outra e outro e outras e outros e acabamos todos
molhadinhos. Não é um ótimo nome? Bem, um já estava escolhido, o bartender,
quem mais convidaríamos para nosso banquete particular? Chegamos cedo, o bar estava
vazio, então sentamos nuns banquinhos altos, daqueles que a gente precisa ou
empinar a bunda para apoiar os pés, ou reclinar o corpo para segurar na
bancada, e ali ficamos, bebendo, rindo, beliscando uns petiscos de camarão,
petiscos de carne e osso. Logo, logo, tínhamos um respeitável plantel puro
sangue ao nosso redor, resfolegante.
A Cat estava sentada de costas para a entrada com o longo
rabo de cavalo loiríssimo escorrido até o cofrinho que aparecia no decote do
vestido que a deixava quase nua para quem visse assim, de trás. Ela ficou ali
de propósito, um chamariz estratégico, um cordeirinho atraindo lobos maus, o que
se mostrou eficientíssimo. Tanto que o dono do bar achou ótimo e disse para o
bartender não nos cobrar drink algum, foram todos cortesias, sem saber que o
malabarista dos coquetéis já estava há horas nos cortejando, há muito
enfeitiçado pelo guizo rouco da Pri e seus longos xis.
Uma mão ousada me enlaçou a cintura e, quando virei, não
acreditei: os olhos negros também ousados, o maxilar másculo, o jeito de falar
ao pé do ouvido, só o sorriso era maroto e adoro ousadias marotas. “É impressão
minha ou estou no paraíso?”, cantadinha barata, mas a pegada era boa. “O
paraíso é muito melhor do que você pode imaginar”, sorri de volta. Foi então
que ele viu, por cima do meu ombro, minhas amigas já devidamente sinalizadas
por mim e com sorrisos receptivos. A pegada ficou mais forte. “Suas amigas são
lindas, mas gostei foi de você”, me surpreendeu.
Ah, dúvida cruel, quando se pode ter tudo ou muito ou tudo e
muito, o que escolher? Busquei o olhar da Catarina que entendeu rapidinho a
situação, também ela enroscada com um loiraço de olhos claros e pele bronzeada
de 1,90m e com certeza avantajado em outros quesitos. Olhamos pra Pri que
estava absorta, praticamente em cima do balcão dando bola para o bartender
porque ali não dava pra dar outra coisa. Então, tá, né? O efeito cascata
ficaria para amanhã. Já o efeito dominó começou ali mesmo: derrubamos duas
garrafas de champanhe, derrubamos nossos planos em plena contagem regressiva
para a meia-noite e, ao primeiro sinal do novo ano, saímos cada uma com um par
– só a Pri ficou, atrás do bar - para nos derrubarmos.
Depois de horas e horas perdidos de tesão nas areias da beira
do mar, meu pedaço de mau caminho me levou para um morrinho na esquina entre
duas praias, a da Ferrugem e a “prainha do canto”. Subimos por pedras e
trilhazinhas até o topo do que dizem ser um antigo cemitério indígena e ali,
entre arbustos e brisas e dedos e línguas e um tronco rígido e uma caverna
úmida, fomos deixando de presente nossos sagrados gritos de guerra. O visual lá
de cima era lindo, pelo pouco que vi, num relance entre um beijo e uma puxada
de cabelo mais vigorosa. O dia estava nascendo, o sol brotava sobre um
horizonte de oceano sem fim...
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